11 de dez. de 2009

Livro: O ANJO DE MATO GROSSO - Hans Haller







6. Excursões – Parte II

„Em 1963, eu fiquei com malária. Isto pode acontecer, apesar de todas as precauções. Mesmo com 41 graus de febre, eu tive que fazer um parto, mas depois eu entreguei os pontos. A Rebecca fez com que eu fosse levada para o hospital em São Paulo. Ainda bem que minha irmã estava no Brasil naquela época. Ela cuidou do ambulatório durante este período.

Muitas semanas eu fiquei entre a vida e a morte. O pior de tudo, foi eles terem dado a notícia, pelo rádio, que eu havia morrido.Os poucos que tinham um aparelho e ouviram a má notícia, a espalharam por todos os cantos. Muitas pessoas, que eu havia ajudado, vieram chorando até minha irmã. Elas vinham de longe até o ambulatório.

Havia um pequeno rádio de pilha empoeirado em cima da cômoda, mas Rebecca não teve nem tempo de ligá-lo. Como não sabia de nada, entrou em pânico, quando os mensageiros chegaram com a horrível notícia. Não havia possibilidade de se comunicar rápido com o hospital. Rebecca ficou com um medo tremendo. Felizmente, chegou uma carta minha desmentindo a notícia.“

A Rosa interrompeu: „Porque ela não telefonou para o hospital e perguntou sobre o seu estado?“

„Primeiro, nós, naquela época, não tínhamos um linha telefônica. Eu duvido que houvesse sequer uma em Rosário-Oeste. Em segundo lugar, minha irmã só tinha estado algumas vezes no Brasil e não conhecia ainda todos os recursos possíveis.

Após algumas semanas – era o ano de 1964 – eu pude voltar para casa como curada. De Cuiabá a Rosário-Oeste, eu viajei de ônibus. Que acolhida! A cabana estava enfeitada (com flores do meu jardim, é lógico). Centenas de pessoas cercaram a mim e a Rebecca, marchando pelas ruas. Elas faziam gestos eufóricos, gritavam e riam. Sempre se ouvia a mesma pergunta: Como vai?

Nesses instantes eu ficava comovida. Eu me lembrava do provérbio da gota d’água, um pouco modificado: de gota em gota se fura a pedra! Lágrimas de agradecimento rolaram pela minha face.

Como eu já mencionei antes, as viagens duravam normalmente três semanas, só ou acompanhada. A primeira e a última semanas eram para o caminho de ida e volta, com suas interrupções inesperadas. A semana do meio era para a ajuda e tratamentos na região escolhida antecipadamente. Eram só sete dias, mais tempo não era possível. O trabalho principal em Rosário-Oeste não podia ser relaxado.

Durante as excursões, normalmente faltavam oportunidades para se lavar ou dormir devidamente. Não havia jeito de mudar de roupa. Além disso, era sair de uma cabana imunda para entrar noutra. Em casa, a primeira coisa a fazer era buscar água. Mas como é que a gente ia conseguir isto? A porta da cabana já estava cheia de gente. Entre eles, homens esperando, há dias, para me levar até suas esposas, em trabalho de parto. Dores de parto em corpos doentios. Imagine em que estado iria encontrar estas pobres? Mas primeiro, tínhamos que cuidar dos que esperavam no banco da frente, ao lado dele ou na soleira da porta. Quando a Rebecca estava morando comigo, era ela que assumia esta parte.

Nessas condições, qual era a pressa de ter água ou de tomar o muito esperado banho? Quando é que chegava a hora de comer ou de dormir? Mas eu não me queixava. Eu fazia tudo o que tinha que ser feito rapidamente. Eu era saudável e forte suficiente, apesar do sono que me restava de vez em quando. Não era o sono que me fazia feliz, mas sim o que eu fazia nas horas acordadas.

No meio do caminho ou nos momentos de descanso, eu, muitas vezes, pensava como tudo iria continuar. Será que era suficiente ajudar e curar? Será que eu não estava lutando contra circunstâncias e situações que excediam as minhas forças, neste meu âmbito limitado?

Eu precisava tentar fazer com que o povo me ajudasse, na medida do possível. As pessoas não podiam continuar assim desamparadas. Também os mais pobres deveriam aprender a ler e escrever. Eles deveriam reconhecer os valores de moradias limpas e de higiene do corpo e, naturalmente, aplicá-los. Além disso, era necessária uma alimentação conveniente, isto é, eles precisavam de uma outra atitude em relação aos legumes e frutas. Por exemplo: como é saudável o limão! Não só como fornecedor de vitamina C, mas também para deixar a boca fresquinha! Mas o que os nativos pensavam a respeito dele? Quando uma mulher tinha um filho e próximo da casa, onde ela estava, havia um limoeiro, as pessoas a levavam rapidamente para outro local. Também durante o resguardo, ela não podia ficar perto de um lugar onde crescesse esta fruta perigosa. Segundo eles, o limão provocava doenças do sangue!

Será que as pessoas do mato teriam a capacidade de serem instruídas? E quem poderia ajudá-los a conseguir o saber necessário? Eu tentava esclarecer pacientes que ficavam em tratamento por mais tempo no ambulatório. As pessoas mais idosas me olhavam com olhos arregalados e nem escutavam direito o que eu estava dizendo. Eu percebi que eles não iriam mais mudar os seus pontos de vista e costumes. Eles, há muito tempo, tinham resignado com o seu destino, seus medos e misérias e a limitação da vida. Tinham medo de conhecer coisas novas, e diziam até que os demônios não iriam gostar se eles tivessem pensamentos assim, e que iriam lhes mandar doenças e a seca.

Com os jovens, eu percebia que muitas das minhas palavras eram bem aceitas. Eu sempre encontrava reconhecidos com vontade de aprender. Era um material humano de grande valor e importância, pois, estava a espera de ser formado. Mas isto tinha que ser feito, sistematicamente, com base e não com conversas ocasionais.

Esta gente precisava de instrução, mas de uma forma, que a tabuada, ler e es-crever fossem só uma das partes do plano didático. De mesma importância era o conhecimento prático da vida.

Mas como eu poderia resolver esta tarefa? Não era só uma questão de tempo, mas também da própria preparação. Um dos meus lemas era: não fazer nada pela metade! Não me meter a fazer nada que eu não fosse apta! Este velho lema me daria o que fazer, mas eu pressentia que era uma coisa certa.

Eu já tinha tido sorte muitas vezes. E tive sorte mais uma vez. Cuiabá, o primeiro lugar onde eu trabalhei, estava se expandindo e a população estava aumentando. A indústria de óleo de coco trazia mais conjuntura. Os pobres ganharam sementes para incentivá-los ao plantio. Também outras empresas atraíam trabalhadores. O problema escolar não era mais só meu.

Freiras católicas começaram, por ordem do governo, a dar cursos para formar professoras. Eu me inscrevi para um deles em Rosário-Oeste. Os responsáveis mostraram consideração com o meu caso especial. Junto comigo, a única estrangeira, havia uma dúzia de moças entre 18 e 23 anos de idade. Como eu me prontifiquei, dentro do plano didático, a dar aulas de higiene, primeiros socorros, francês e trabalhos manuais, as diretoras me dispensaram da mensalidade.

O curso durava quatro anos e as alunas bem sucedidas receberiam um diploma de professora, reconhecido pelo governo. Eu comecei o curso em 1961 e ia às aulas na parte da manhã, porém, muitas vezes eu tinha que pedir tolerância, quando precisava sair no meio da aula: um acidente, complicações repentinas com uma parturiente ou ida a um moribundo eram os motivos para isto. De tarde, eu dava aulas para minhas colegas – como foi combinado. Mas mesmo estas, sempre ti-nham interrupções.

Além disso, ainda fazia as viagens curtas ou longas. Os livros e revistas ficavam por cima do volante do Jeep. Eu estudava, mesmo de noite. Isto não quer dizer que eu, de repente, tenha conseguido pausas noturnas maiores. Durante a viagem, então, nem se fala! Mas mesmo o ambulatório não me dava mais tregua. Eu tinha colocado uma placa na porta: horário de consultas das 08.00 as 12.00 e das 14.00 as 18.00 horas. Mas mesmo as pessoas que entendiam o texto não ligavam para ele, muito menos as que vinham de longe.

Eu consegui terminar os quatro anos e tenho, desde então, o diploma de professo-ra. Para isso, eu tive que aprender a língua portuguesa corretamente com todas as regras. Agora eu tinha conseguido a base para as minhas atividades.“

Rosa interrompeu: „ Houve algum problema por causa da sua doença? Como você contou anteriormente, o seu caso de malária foi exatamente nesta época. Você teve que repetir este ano?“

„Não, porque o Brasil não é Suiça. Eu tinha 20 anos mais do que as minhas colegas e por isso mais experiência. Os responsáveis pela escola deram valor a minha sabedoria de vida. Além disso, eu adorava estudar, como muitas outras coisas que eu fazia. Antes da minha ida para o hospital, eu já estava bem adiantada no plano didático. Depois eu consegui recuperar tudo. O programa era feito para o sistema brasileiro, isto é, havia classes de manhã, a tarde e a noite. Com os meus 40 anos, eu tinha uma outra atitude em relação à vida e ao meu trabalho, comparado à visão das moças novinhas. Para elas, o divertimento e o namoro eram mais importante do que a escola.
Eu me sentia muito satisfeita com o sucesso das minhas experiências educacionais, de vez em quando. Eu gostava de entrar em uma cabana, que agora estava limpa e com uma toalha sobre a mesa. Eu admirava o trabalho de ponto cruz, que eu tinha ensinado, feito com material de sobras que eu havia comprado baratinho numa fábrica em São Paulo. Mais uma vez, lembrei-me do provérbio da gota d’água na pedra quente e da pergunta: Como é que tudo isso vai continuar? Era um verdadeiro aprendizado...

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