11 de ago. de 2009

Livro: O ANJO DE MATO GROSSO (Hans Haller)


2. Primeira Viagem ao Brasil (parte V)


Em todos os lugares, em que eu quis completar a minha especialização, sempre encontrei muita compreensão. Nas horas livres, eu ia à Clínica Odontológica para aprender a extrair dentes, profissionalmente. Na Clínica Oftalmológica, eu aprendi a fazer tratamentos simples dos olhos, principalmente a lavagem do canal lacrimal.
Neste meio tempo, chegou uma carta do casal de missionários que insistiam que eu viesse antes. Eles até me ofereceram pagar a maior parte das minhas despesas de viagem. Além disso, me asseguravam casa e comida na sua casa de missão.

Eu tinha me decidido a ir, mas também aprendi a pensar com realismo. Por isso eu tive que reconhecer que me faltavam as seguranças primordiais para uma atuação útil, a longo prazo. Os missionários me ofereciam isso e por isto eu concordei definitivamente.

Com o resto das minhas poupanças eu comprei instrumentos cirúrgicos, bisturis, seringas, medicamentos e ataduras. Tudo isto, eu precisava para montar um consultório próprio.“

A Graziella interrrompeu: ”Por que você diz consultório? Você não é médica.”

”Esta pergunta eu já ouvi muitas vezes. Assim como você, também outros amigos e conhecidos na Suíça ficaram admirados. Todos acham muito arrogante que uma enfermeira e parteira, apesar de conhecimentos especializados, assuma funções iguais a de um médico. Entretanto, eu sabia, por minhas experiências no Brasil e as narrativas de missionários, que eu deveria me preparar para assumir tais funções. Eu nunca quis ser mais do que realmente sou. Quando a escolha era morrer, sem a assistência de um médico, ou aceitar o tratamento cirúrgico de uma enfermeira, não havia dúvidas que a última opção era a escolhida.”

Graziella disse um pouco encabulada: ”Por favor, me desculpe, Rachel”.

”Com o passar dos anos eu aprendi muito, principalmente agilidade e poder de decisão. Eu tinha sempre que dar um jeitinho e arriscar a fazer intervenções, mesmo sob condições precárias.

Quando eu estava preparando a minha viagem, eu deparei, aqui e acolá, com sorrisos complacentes quando não olhares repreensivos. As pessoas achavam que eu não sabia o que estava arriscando, e que eu não tinha consciência do significado do meu empreendimento.Então esta coisinha do Appenzell (estado da Suíça), com umas poucas malas de bagagem, estava querendo conquistar a selva? Será que ela estava querendo superar condições que desmoralizam mesmo os mais fortes dos homens.

Pois deixe todo mundo olhar ou falar o que quiser. Eu, por minha parte, me preparei conscientemente. Me despedi das regalias e prazeres suíços e fiz os meus preparativos para uma vida modésta. Durante a minha primeira estadia no Mato Grosso, eu já havia tido uma amostra do que me aguardava. Eu, já na pátria, praticava a renúncia, para que fosse mais fácil depois.

O dia da despedida se aproximava. Além de abanos de cabeça e conselhos, eu recebi também algum dinheiro de amigos e conhecidos. Eles me aconselhavam comprar chocolate, conservas finas ou vestidos.

Quanto a gente precisa mesmo para viver e ser feliz? Eu agradeci os presentes aos amigos e comprei medicamentos com o dinheiro. Eu sabia, que pela renúncia de um tablete de chocolate, eu talvez, num momento crítico, pudesse salvar a vida de uma mãe de muitos filhos...”

Rita comentou: ”Nossa, isto parece incrível !”

”Eu sabia, por experiência, que a população mestiça do Brasil não estava ainda acostumada a tomar comprimidos ou injeções. Por isso, às vezes, pequenas doses faziam milagres.
O grande dia chegou. Minha irmã Rebecca me acompanhou, de carro, de Ascona até Gênova. Lá nos despedimos e eu tomei o navio que me levaria a Santos. Um ônibus me levou para São Paulo e de lá, um avião para Cuiabá. O reencontro com meu irmão nos proporcionou uma alegria muito grande.

No dia seguinte, Benjamim me apresentou ao casal de missionários. Com a caminhonete deles fomos, por uma estrada empoeirada e esburacada, para Rosário-Oeste. Diante da minha futura modesta casinha já esperavam muitas mães com crianças doentes, chorando de cortar o coração.

Bem, chega por hoje! Amanhã eu contarei sobre o meu trabalho na enfermaria da missão.”

Anna disse por fim: ”Com as suas narrativas, a nossa vida toma um novo sentido. Antigamente a gente vivia à toa por aí. Agora a gente fica aguardando, impaciente, o dia de amanhã para ouvir a continuação. Mesmo quando você não está aqui, nós conversamos sobre as suas vivências”.

Rachel ficou radiante: ”Isto me deixa muito contente. A mim também faz bem contar sobre o passado.”

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