25 de ago. de 2009

Livro: O ANJO DE MATO GROSSO (Hans Haller)


3. A Enfermeira da Missão (Parte III)

Diariamente eu encontrava novos e outros problemas. Por exemplo, vinham doentes acompanhados de toda a sua família. Dentre eles eu descobria novos pacientes, só que neles, as doenças não estavam ainda em estado tão adiantado. Se eu os tratasse nesta fase precoce, eu talvez pudesse evitar que a enfermidade piorasse.

Logo comecei a usar um carrinho de mão como ambulância. Uma das famílias havia trazido um doente usando este carrinho, que me foi doado como agradecimento. Se eu ouvia um ruído de solavancos lá fora, eu sabia que estava chegando a ambulância. Quando ela não estava em serviço, ficava encostada, no lado da porta do ambulatório, até que viesse uma emergência.

O intenso calor diurno e a sempre presente poeira vermelha ressecavam as gargantas. Por isso, as pessoas costumam ficar sempre cuspindo. Além disto, os homens frequentemente mascavam fumo ou outras coisas. Vocês devem imaginar a limpeza do meu chão. - Eu tinha que acabar com isso ! – Então coloquei um cartaz, na parede, dizendo: É proibido cuspir no chão! Eu pedia às pessoas, que sabiam ler, que informassem aos outros a respeito. Também distribuí várias latas para servir de cuspideira. Mas a irritação das mucosas ressecadas e a necessidade de se livrar delas era muito intensa. Uma vez eu percebi algo grudento voando contra a minha parede. Isso, enquanto eu estava arrancando o dente de um menino. Durou algum tempo até que os visitantes percebessem que a mulher branca não gostava muito dessas decorações nojentas na parede dela.”

Rachel tomou um gole de café. Graziella comentou arrepiada:

”Credo! Eu não aguentaria isto nunca! Eu detesto gente que cospe em público. Eu admiro o que você conseguiu fazer nestas condições. Acho que eu não teria aguentado nem um dia.”

A enfermeira sorriu e continuou:

”Dona Rachele, como os nativos me chamavam, aprendeu a conhecer doenças que não constavam de nenhum livro médico. Na maioria das vezes, as pessoas estavam acometidas de uma série de doenças. No danado desse calor, uma ferida comum, que não foi tratada, se infestava de parasitas e micróbios. Vermes, gangrenas até os ossos, doenças da pele e feridas purulentas alastrantes são só o começo. Depois vem a febre amarela. Isso tudo era frequentemente acompanhado de doenças congênitas. A sífilis era muito comum e a malária não tinha como exterminar.

As doenças do corpo eram acompanhadas da indescritível miséria material e psíquica. Quase todos estão desnutridos, principalmente os, por assim dizer, cons-tantemente famintos moradores do sertão. Eles comiam cobras, lagartixas e até terra quando a caça era em vã. Só existe trabalho nas cidades e por isso faltava o ganha pão. Principalmente os velhos perdiam completamente a motivação e energia para viver. Os jovens, frequentemente, procuravam uma saída na criminalidade. Nas suas condições miseráveis, é praticamente uma necessidade para que possam sobreviver, e por isso, compreensível.

No Mato Grosso existe a lei do mais forte. A violência está presente no dia a dia. Acontece de um matar o outro numa briga - muitas vezes por ninharias. Quando o assassino vai para a prisão, a família dele fica numa miséria ainda maior. Eu até paguei inúmeras fianças para ajudar pais de família”.

Maria suspirou: ” Até a pouco tempo atrás, condições como essas eram inconcebíveis. Mas eu ouvi a minha irmã de Zurique contar que, entre os drogados e traficantes na sua cidade, podem-se encontrar situações parecidas. Então a Suíça e o Brasil não tem mais muita diferença.”

”Eu também me lembro de um caso de violência. Naturalmente não foi o único, mas agora mesmo estou me lembrando dele: Eu tinha acabado de fazer um parto, quando um auxiliar meu chamou, para um acidente em frente do ambulatório. Eu apliquei uma injeção hemostática no paciente. Nesta hora chegou um índio esfarrapado, dando chicotadas atravez da multidão de curiosos. Ele agarrou o meu braço e me arrancou do meu trabalho, arrastou-me com ameaças e tapas até a sua mulher, que estava numa pobre choupana. Ela tinha tido um colapso e eu consegui reanimá-la, em pouco tempo. Eu fiquei impressionada com a gratidão e a emocionante e infantil afeição de um homem, aparentemente tão violento.

Um pai trouxe seu filhinho que tinha sua barriguinha muito inchada e a pele toda comida de vermes. Eu tratei com comprimidos contra febre, cortados em quatro. Notei, também, que o estômago estava cheio de terra. Eu dei um purgante e uma injeção contra tétano. Com vitaminas eu combati os vermes. Após uma semana, o menininho pode voltar para casa. Como prevenção, eu dei comprimidos de vita-minas. Pelo menos, por enquanto, eu pude ajudá-lo.

Um mestiço trouxe, em uma rede, um homem doente de sífilis, passando muito mal. A minha diagnose, neste paciente de 35 anos de idade, foi de uma nefrite, isto é, havia uma grande pústula palpável no rim, que ainda estava intacto. Eu fiz uma perfuração, lavei e tratei com antibiótico. Após dez dias, eu dei alta . Para mim, isto foi mais uma prova de que o processo de cura aqui era muito mais rápido do que na minha pátria.

Eu tratei de um moço de 16 anos, que nunca tinha aprendido a andar e sempre estava febril. Ele tinha ataques de paralisia, ficava vesgo de repente, tinha convulsões e, as vezes, não conseguia engolir. Eu dei remédios e fiz massagens.

A ambulância trouxe um velhinho cujo maxilar estava rígido e as mãos amarradas. Ele estava anêmico e praticamente morto de fome. Eu apliquei uma infusão de cloreto de sódio no músculo e auxiliei o coração e pulmões. Mais tarde, eu apliquei soro na veia, dei vitaminas e de beber, frequentemente. Eu fiz compressas de glicerina para amolecer a lingua, que já estava toda rígida. O paciente se recuperava a cada hora que passava. Tibúrsio, este era o nome dele, disse que nunca ninguém tinha tratado dele assim. Ele queria ficar comigo para sempre.

Uma menina de quatorze anos deu a luz a uma criança de cinco quilos, mas já morta. A mãe estava extremamente anêmica e às portas da morte. Os missionários e eu lutamos, a noite toda, por esta vida em extinção. Graças a Deus, com sucesso.

Eu também tive trabalho com um fim de uma grande festa. Bêbados me trouxeram, em uma rede, uma vítima de um esfaqueamento, todo ensanguentado. Um curandeiro tinha posto terra na ferida e tampado com algodão ou talvez com pelos de gato. Na luz de um miserável lampião a petróleo, eu limpei tudo, estanquei a hemorragia, desinfetei e dei pontos no corte.

Eu fui confrontada com todos os possíveis acidentes. Por exemplo, um homem prensou sua mão moendo cana-de-açúcar. Todos os cinco dedos foram amassados pela metade ou totalmente. Eu só consegui tratar de um após o outro. Foi um trabalhão. Mas os dedos se recuperaram bem. Como por um milagre, nasceram até unhas novas mais tarde.

Como feridas conseguem sarar rápido. Eu presenciei um caso de um pescador que tinha cortado quase toda a ponta do seu dedão, numa lata dentro d’água. Pois, a ponta do dedão só estava presa por um pedacinho de pele. Assim mesmo, o ferido conseguiu andar 100 metros até chegar ao ambulatório. Eu limpei a ferida, tratei com infusão de cloreto de sódio e fiz uma atadura bem firme. A ponta do dedão sarou por completo.

Muitas vezes as pessoas me chamavam, em casas de barro, onde havia doentes febris, cheios de úlceras, deitados em redes ou sobre peles de boi no chão. Nestas moradias desprovidas de móveis, eu tinha que tratar dos pacientes, penosamente, de joelhos. Em Rosário-Oeste não havia sequer uma torneira d’água. O abastecimento de água também não era dos melhores. Quando não chovia por longo tem-po, até os poços artesianos secavam. Nesta época, os pobres rezavam para que chovesse no sertão.

Enquanto eu atendia nas casas dos pacientes, os outros faziam fila na porta do ambulatório e tinham que esperar. Normalmente eles tinham muita paciência. Um homem das redondezas, porém, era uma exceção. Eu estava tratando, no consultório, de uma mulher que sangrava muito. Um cavaleiro entrou e queria me levar para ver a sua mulher, que estava muito doente. Eu prometi que iria o mais breve possível, mas que precisava estancar, primeiro, a hemorragia. E isto não era fácil. Depois de duas horas, o homem apareceu outra vez. Todo enfurecido, ele rodou o chicote e perguntou se eu ia deixar a sua esposa morrer.

Vários curiosos ficaram olhando em frente da casinha. Ninguém se atrevia a enfrentar o raivoso. De onde eu tirei o sangue-frio, para fazê-lo voltar à razão, eu não sei. Eu arrastei o homem de perto da minha paciente, que ainda sangrava. Seu rosto mudou de cor. Então ele esperou até eu estar em condições de sair e fomos, à cavalo, até sua esposa.

A gratidão das pessoas era comovente. Raramente havia alguém que pudesse sequer pagar algo pelos remédios. Mas elas davam o que tinham: mandioca, abóbora, um ovo ou qualquer coisa de comer que pudessem conseguir. Até um tatú alguém quis me dar. Enquanto eu fazia minhas refeições com os missionários, eu levava os mantimentos para a nossa cozinha em comum. Mais tarde, eu preparava a comida eu mesma”.

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