30 de set. de 2009

Livro: O ANJO DE MATO GROSSO (Hans Haller)


4. A Criação da Minha Própria Obra de Assistência – Parte I

As moradoras do Lar de velhinhos de Brissago esperaram mais de duas semanas até que Rachel Steingruber novamente fosse almoçar com elas. Ela ainda usava óculos escuros para proteger os olhos. A enfermeira sentou-se junto às suas amigas.

Anna Pedroni perguntou: ”Como é que foi? A operação foi bem sucedida?“

”Eu não sei ainda. Até ontem, eu tive que ficar na clínica. Com o olho esquerdo eu não consigo enxergar nada e o direito foi operado. Os médicos me disseram que eu tive uma infecção e ainda sinto dores. Eu só aguento colocando o colírio e minha visão também não melhorou nada. Eu não confio muito nesses médicos, imaginem só, o que teria acontecido se eu tivesse ficado cega. Os pobres no Brasil ainda precisam de mim!“

Rosa se intrometeu: „Como eu já contei, eu tive que fazer uma operação de catarata no ano retrasado. A minha filha, que mora com sua família em Basel, me recomendou uma oftamologista em Lörrach, que tem uma reputação muito boa. Ela me examinou e receitou produtos homeopáticos. Para a cirurgia ambulatorial ela me encaminhou a um colega dela nos arredores de Basel. No mesmo dia, eu pude voltar para casa.“

Rachel falou pensativa: „Se não houver melhoras nos próximos dias, eu tentarei me comunicar com essa especialista. Você poderia me dar o endereço dela depois do almoço?“
„É lógico.“

Como neste dia estava chovendo, as senhoras trocaram a varanda pela sala de estar. Rachel tomou um gole de café e relatou:

Em 1959, eu me mudei da casinha de barro da missão. Facilmente, eu consegui arrumar outra, mas era bem velhinha e caía aos pedaços. Como eu tinha que comprar, eu não liguei muito para isso, já que o preço era baixo. Eu estava convicta de que, com o tempo, as coisas iriam melhorar.“

Graziella interrompeu: „De onde você tinha o dinheiro para pagar a casa ?“

„Naquela época, eu trabalhei, por vários meses, na sala de operações de fraturas no Hospital Samaritano de São Paulo. Assim, eu ganhei um dinheirinho e adquiri alguma experiência. Além disso, o número de amigos e doadores aumentava a cada ano. Nas minhas cartas circulares, comecei a relatar sobre as minhas atividades e isso deve ter ajudado a aumentar as doações. Elas não vinham de grandes contas bancárias e sim de pessoas que economizavam no dia a dia, e portanto, as quantias não eram muito grandes. Mas mesmo duzentos francos suíços podem valer muito num momento de necessidade...
E Rosa perguntou: „ Ninguém te ajudava na coleta do dinheiro?“

„Sim, na Suíça havia algumas pessoas prestativas, que me ajudavam na administração. Mas quando eu vejo como entidades de caridade são bem apresentadas e comercializadas, eu me arrependo por não ter feito mais. Eu poderia ter ajudado muito mais necessitados, mas eu era uma só.“

Maria comentou: „Você tem razão. Hoje em dia, nos somos inundadas com cartas de mendicância. Você não consegue distinguir as entidades que merecem ser ajudadas. Eu tenho certeza de que muita gente teria ficado feliz em apoiar a sua obra.“

„Minha nova moradia possuia três cômodos. As paredes e assoalhos estavam comidos pelas saúvas. Não existiam portas porque não havia lugar para abri-las e no lugar delas eram usados cortinados. Só a porta da frente é que podia ser fechada. Por causa do calor, o telhado era aberto ao redor. Uma vez, o vento fresco da noite me trouxe uma tarântula para dentro de casa. Ela bateu contra o meu rosto enquanto eu estava dormindo e eu acordei desesperada.

Minha cama estava em um dos quartos maiores: ao lado, a velha poltrona – a tal cama de emergência - aguardava, pacientemente, que eu precisasse dela. Mais uma cama e uma pequena mesa completavam o meu mobiliário. A cabana era só térrea, mas eu coloquei várias redes, de atravessado, por cima de tudo. Frequentemente, elas estavam todas ocupadas por pacientes. Com o passar do tempo, tinha que ser encontrada outra solução, porque as paredes da casa não aguentavam o peso.

O terceiro cômodo, que era o menor, servia como consultório odontológico, cozinha, consultório e sala de jantar, ao mesmo tempo. Onde é que eu poderia cuidar dos pacientes, tratar dos ferimentos, engessar as pernas e braços quebrados ou extrair os dentes? Na cozinha eu cozinhava não só para mim. Além dos meus pacientes acamados, vinham pessoas com suas famílias, de longe, para o tratamento ambulatorial. Eles não pensavam em trazer lanche algum. A mulher branca, da qual já tinham ouvido falar muito, não iria deixá-los com fome, né? Eles também mostrariam sua hospitalidade, se eu fosse, inesperadamente, em sua cabana. Este modo de pensar era comum entre as pessoas simples. Muitas vezes eu tinha que estender a sala de jantar até ao banco, em frente da casa. Mas tudo funcionava bem. Não desapareciam talheres de prata porque não havia nenhum. Mesmo os meus pratos de alumínio não sumiram. Eu fiquei impressionada com a honestidade deste povo. Eles moravam, como já mencionei, em cabanas sem portas, só separadas, da rua, por peles de vaca.

Eu estava em Rosário-Oeste, constituído antes só de algumas casas ao redor de uma praça. Com o passar dos anos, foram aparecendo cada vez mais moradores. As pessoas e os animais viviam bem juntos uns dos outros. Uma tartaruga enorme costumava pernoitar embaixo da minha cama e isso não me deixava arrepiada. De tempos em tempos, eu borrifava inseticida, mas mesmo assim as minhas paredes se decompunham cada vez mais. As saúvas praticamente as devoravam.

Se eu não fosse uma pessoa tão otimista, eu talvez cogitasse em que daria este meu emprendimento. O banco de espera, em frente a minha casa, estava sempre ocupado, e ao lado também uma multidão de pessoas aguardavam, perseverantes, a sua vez. Esta era uma cena comum. Além disso, eu sabia que havia uma indes-critível miséria nas ruas e cabanas, que eu nem acesso tinha. Eu só tenho duas mãos e não podia me dividir para ajudar a todos... De onde eu iria arranjar medicamentos e ataduras suficientes? E camas ou redes para os enfermos?“

Graziella perguntou: „Você nunca desanimou? Apesar do seu empenho, o seu trabalho era só uma gota d‘água na pedra quente.“

„Eu nunca ponderei sobre isso. O que seria se não houvesse esta gota d’água? Para mim, não era a pedra quente o objetivo da gota, mas sim a boca sedenta que esta gota poderia, pelo menos, umedecer um pouquinho. Mesmo um chuvarão é constituído de gotas isoladas. Sem elas não há chuva alguma.“

A Graziella comentou timidamente: „Você tem razão. Eu não tinha pensado nisso.“

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