28 de mar. de 2010

Livro: O ANJO DE MATO GROSSO - Hans Haller





10. O Museu - Parte I

Depois do almoço, Anna, Maria, Rita e Graziella seguiram Rachel até sua casa, que ficava a algumas centenas de metros de distância. Assim, como no Lar dos Velhinhos, a vista sobre o Lago Maggiore, com suas águas de um lindo azul escuro, era dominante e impressionante. E também a margem oposta com as montanhas do Gambarogno. Da sacada espaçosa, se vê desde as ilhas Brissago até o delta do rio Maggia e a cidade de Locarno.

Rachel falou: „Vocês já conhecem este panorama, não é mesmo? Porém, visitantes de fora, nunca se enfartam dele. Quando o tempo está claro é possível ver além da planicie do Magadino até os castelos de Bellinzona.“

Maria comentou: „Nós moramos mesmo num lugar maravilhoso. O panorama – as atividades dos barcos a motor e a vela no lago – quase que dispensam a televisão. Além disso, o clima é bem ameno. Os jardins têm palmeiras e bananeiras (coisa rara nas outras partes da Suíça).“

Anna perguntou: „Esta moradia é sua?“

„Sim. Eu a comprei à oito anos atrás. Ela não é grande, mas para mim é suficiente. Além da sala com cozinha, que vocês estão vendo, tem um quarto e banheiro.“

A Graziella comentou: „Quando nós entramos, eu reparei a pele de cobra, dependurada na parede. Você tem uma história a respeito, Rachel ?“

„Tenho. Em 1964, houve uma seca muito grande no Mato Grosso. Não chovia a dez meses e a natureza estava morta. As crianças morriam de sede. De dentro das cabanas, se ouviam choros e vozes infantis pedindo: Mamãe, me dê água!

Mesmo animais selvagens ariscos, saiam de suas tocas e procuravam as casas das pessoas em busca de água. Assim, apareciam nos quartos, escorpiões, aranhas, tarântulas e também cobras. Uma gibóia entrou de noite numa casa de sapé no Vale do Parecis. Ela estava procurando algo para beber e sentiu o cheiro de leite. Era o leite de uma mãe, deitada numa rede, amamentando seu neném recém-nascido. Pois a tal cobra engoliu o bebê, enquanto a mãe estava dormindo. Como a rede balançou, a mulher acordou. Na escuridão ela apalpou e não achou mais o seu filho. Ela chamou o marido, e este acendeu o lampião a petróleo. Ele só chegou a ver a ponta do rabo da cobra saindo pela porta. O dono da casa levou um tremendo de um susto e compreendeu, num relâmpago, o que havia acontecido. Ele pegou sua espingarda e lá se foi atrás da cobra. Deu um tiro de pouca distância na cabeça da malvada. Pela protuberância no corpo da cobra ele pode ver onde estava localizado o seu filho. Colocou-se de joelhos em cima do corpo da cobra e empurrou, com suas mãos, a criança pela boca afora.

Ela não estava ferida, mas mesmo neste curto espaço de tempo dentro do corpo da cobra, já estava toda cheia de gosma do estômago. O pai tirou sua camisa rasgada e envolveu a criança com ela. Ele não sabia que isto impedia que o oxigênio, tão necessário no momento, chegasse até o neném. Ele se despediu de sua mulher e correu, o mais rápido possível, até mim. Ele me conhecia de antigamente. Ao raiar do sol, ele chegou completamente esgotado na minha casa, que ficava a 8 quilômetros da sua.

Eu acordei imediatamente. Eu acho que foi muita sorte eu ter tudo necessário, em mãos, para salvar esta vida. Primeiro eu aspirei pela boca, com uma mangueirinha, a gosma que estava nos pulmões e estômago do neném. Depois eu fiz alguns movimentos respiratórios e consegui fazer o coraçãozinho bater. Além disso, eu apliquei uma injeção que eu havia trazido da Suíça. Ele permaneceu duas semanas comigo para observação. Como agradecimento, o pai me presenteou com a pele da cobra.“

Rita achou: „Isto parece até um milagre. Você ouviu falar do menino mais tarde?“

„Sim. Três anos mais tarde, eu estava cavalgando com meu cavalo pelo Vale de Paris. Um carro de boi passou por mim e as pessoas ficaram me encarando. Eu achava que eles precisavam de ajuda Então desci da minha montaria e perguntei se eu podia lhes ajudar em algo .

Eles disseram que não, mas queriam saber se eu era a Rachel. Quando eu disse que sim, a mulher mostrou para o menino. Ela explicou que aquele era o tal, engolido pela cobra, que eu um dia tinha salvo.

E o pequeno sorriu para mim.“

Maria enxugou os olhos rasos d’água: „Esta história me deixou tão comovida que me dá vontade de chorar. Eu entendo agora porque você teve tanta satisfação com o seu trabalho.“

A casa da Rachel era como um museu. Nos cantos estão porta-guarda-chuvas cheios de setas de índio, lanças e arcos. No chão, uma pele de onça. Suas patas, com garras afiadas e os dentes aguçados na boca, fazem imaginar a sua ferocidade em vida. No recosto do sofá tem uma pele menorzinha de um gato do mato pintado. Jacarés e Piranhas empalhadas são testemunho da vida aventureira da moradora.
Fotos nas paredes mostram Rachel no meio de indígenas. Porém, o que mostra vida e alegria na sala é um quadro de couro no tamanho de 2 por 1 metro. Ele é cheio de papagaios coloridos e tucanos. A anfitriã nota os olhares admiradores.

„Com este quadro eu tenho uma história toda especial. Um homem perdeu uma perna num acidente e mais uma parte da outra. Eu tratei dele e salvei sua vida, cuidando para que os tocos ficassem sempres limpos e não pegassem gangrena. Quando ele tinha superado o pior, eu o levei para São Paulo. Ele esperava, apesar da sua deficiência, poder conseguir um meio de ganhar dinheiro e mais tarde até poder comprar próteses.

Eu permaneci em contato com ele. Assim eu ouvi dizer que ele tinha começado a trabalhar com couro e fazer obras artísticas. Logo, ele não se contentou só com isto. Ele queria fazer pinturas no material. Primeiro ele começou com quadros menores e foi aumentando o tamanho. Seu primeiro trabalho grande foi este aqui, o qual ele me presenteou. Um outro trabalho deste artista desconhecido está no meu dormitório.“

Graziella mostrou um documento emoldurado na parede: O que é isto?“

„Em 1973, durante uma visita à pátria, eu recebi da Fundação Goethe da Basiléia a medalha Albert Schweitzer.“

Albert Schweitzer com Rachel, na entrega da madalha de ouro
As senhoras olharam admiradas para Rachel e depois para a medalha que ela ti rou de uma gaveta e mostrou.

„Com a minha popularidade, aumentaram também as doações na minha conta. Eu expandi a minha ajuda. Com o fluxo do dinheiro, eu realizei um velho sonho: Em 1974, eu inaugurei no meu terreno a Escola Professora Rachele Steingruber.“



Anna perguntou: „Ela ainda existe?“

„Existe. Porém, eu, há anos atrás, a transferi para a prefeitura da cidade, porque eu não podia mais cuidar dela eu mesma. Por isto é ela quem paga os professores e é responsável por tudo. O imóvel, porém, continua pertencendo à fundação.“

Maria perguntou: „ Você fez uma coleção de dentes neste copo?“

Rachele dentista

Ela tinha em suas mãos um vidro de conservas cheio de dentes de formas grotescas.

„É. Desde a minha primeira viagem ao Brasil, eu notei que muitos adultos e também jovens tinham perdido todos os seus dentes. Muitos tinham dentes infeccionados, o que era um perigo. Quando o pus se infiltrava no sangue, elas eram vítimas da piorréia...

Infelizmente, é praticamente impossível pessoas pobres tratarem dos dentes ou mandar extraí-los. A maioria dos dentistas querem ver dinheiro vivo. Por isto, foi feito o nosso plano para uma clínica odontológica, como eu já contei para vocês.

Eu extraí inúmeros dentes e encontrei incríveis formas de raízes. A fome e as doenças deixavam rastros na boca dos pacientes. Eu achei formações que lembravam parafusos ou anzóis entrelaçados. Extrair raízes assim não era brincadeira. Eu colecionei estes dentes extraordinários neste vidro de conservas que vocês têm em mãos agora.


Eu sou agradecida que tudo tenha dado certo. Alguns pacientes me perguntavam, depois, se eu não iria extrair o seu dente, pois, não tinham sentido nada.

De norte a sul vinham os pobres, primeiro para Rosário-Oeste e depois para Várzea Grande. Trouxeram-me um homem vindo da Bacia Amazônica que parecia um gorila. Sua aparência era horripilante. Ele era pobre, doente e seu maxilar inferior estava deslocado. Ele fez um caminho de 1'600 quilômetros, à pé, subindo o rio Madeira, de navio até Porto Velho, e de lá, de carona para Cuiabá. Durante toda a sua viagem, ele não encontrou ninguém que conhecesse algo de anatomia e pudesse repor seu maxilar no lugar.

Eu consegui fazer isto num piscar de olhos. Como o rosto estava inchado, eu fiz uma atadura para evitar que o maxilar deslocasse de novo. No dia seguinte, o Astrogildo me contou, que durante a sua viagem, muitas pessoas caridosas haviam tentado ajudá-lo. Um deles tinha lhe dado um soco, o outro uma paulada e um terceiro fez uma tentativa com um martelo enrolado em um pano. Pelas diversas cores no seu rosto, eu acreditei na história imediatamente.“

Maria falou: „Com o seu trabalho, Rachel, você foi uma impagável e muito bem sucedida representante da Suíça.“

Rachel tirou uma carta de uma gaveta: „Esta carta, do ano de 1977, é do prefeito de Aripuana. Nela ele confirma que eu me encontrava na sua cidade, distante 1000 quilômetros de Várzea Grande, distribuindo medicamentos, leite em pó e outras coisas minhas. Este homem, Sebastião Otoni de Carvalho, relatou também que eu tinha tratado, em condições extremamente simples, mas com muito carinho, de mais de 600 pessoas. Isto, aguentando picadas de mosquitos e outros insetos.

Ele ressaltou que eu também ensinei às pessoas a cuidarem mais da higiene e como sobreviver nesta região. Ele terminou dizendo que eu tinha feito a melhor propaganda para o povo suíço com a minha solicitude e modéstia.“



Maria mostrou os diversos carimbos no documento: „O que significam?“

„No Brasil existe uma grande desconfiança de que documentos, cartas e assinaturas possam ser falsificadas. Assim como aqui os notários reconhecem as assinaturas e documentos, acontece o mesmo na minha segunda pátria.“

Mais uma vez Maria retoma a palavra: „Esta carta é uma prova do que eu disse antes. Enquanto os diplomatas oficiais vivem no luxo, você sempre teve que lutar para sobreviver e fazer a sua missão. Não seria mal ter um pouco mais de apoio de Berna para estes projetos. Eu achava bom que eles dessem, pelo menos, um aumento na sua renda de aposentadoria.“

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